terça-feira, 12 de novembro de 2024

AINDA ESTAMOS AQUI (Por Cláudio Jorge)


VERSÃO EM ÁUDIO

Assisti neste fim de semana duas manifestações artísticas afins. A peça do Othon Bastos, “Eu não me entrego não”, e o filme “Ainda estou aqui”. Os dois eventos provocaram em mim muitas emoções, sensações, e sem mudar a rima, provocaram também reflexões, como é capaz de produzir toda manifestação artística que se preze.

Escrever sobre “Ainda estou aqui” é até fácil, sob o ponto de vista do meu relato, difícil sob o ponto de vista da história. É muito natural e necessário dirigir todos os aplausos para a interpretação maravilhosa de Fernanda Torres no papel de Eunice, esposa do Deputado Rubens Paiva, morto sob tortura nas dependências do exército brasileiro na época da ditadura militar, tema do filme.

Impossível não se compadecer do drama de Eunice, com filhos ainda pequenos, sob a elegante, altiva, comovente interpretação de Fernanda. Putz, estou aqui me controlando para não dar uns spoilers.

Mas uma reflexão que chegou a mim vinda da tela, é de como a irracionalidade e maldade humanas, sob o pretexto de acabar com o “comunismo”, pôde destruir famílias, destruir trajetórias de vidas, destruir tecidos sociais, interromper progressos humanitários, impedir o progresso do Brasil, em várias escalas, até hoje. “Ordem e progresso” estampado na nossa bandeira já diz tudo. Se fosse “Paz e amor” seria tudo tão diferente...

Digo até hoje no sentido que as pessoas que promoveram aquele estado de coisas continuam ativas, inimputáveis, e também no sentido de que os gritos de sofrimento nas salas de torturas continuam ecoando nas mentes dos mais velhos que viveram aqueles tempos. Neste filme, mais uma vez, experimentamos o relato da mazela que é a tortura do homem pelo homem, aquela coisa que deixamos embaixo do tapete, até a hora que acontece com a gente ou com alguém próximo da gente.

A família Paiva morava em Ipanema, de frente pro mar, privilegiados na escala social e mesmo assim, não escaparam da maldade, da crueldade. Me inspiro nas infelizes palavras do Paulo Maluf, “estupra, mas não mata”, para perguntar: não dava para prender, julgar, condenar, mesmo que injustamente, mas sem torturar? Não.

As ditaduras abrem portas para as manifestações humanas mais macabras, nos esconderijos das cadeias, nas noites, nos porões, enquanto a vida segue o baile, com o Brasil sendo campeão da copa de 70 com festa em tudo quanto foi canto.

Pensar diferente custa caro, ter opinião própria, publicamente, custa caro, ser contra uma corrente pode ser fatal, e assim vamos seguindo nossas vidas nos equilibrando, cercados de limites, com duas escolhas pelo caminho: produzir clips com o tamanho que for preciso, ou se submeter aos noventa segundos impostos pelo Instagram, por exemplo.

Para não misturar os climas numa mesma crônica escreverei sobre “Eu não me entrego não” na próxima, mas o título da peça pode completar a crônica do filme, né? Beijos.

Um comentário:

  1. Quero assistir ao filme primeiro pra ler!! Mas adoro ler o que vc escreve, pois vc escreve muito bem e a leitura é fácil e prazerosa! Bjo amigo!

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